Quinta, 9 de Maio de 2024 Adrego & Associados – Consultores de Gestão

Falha no Orçamento de Estado cria vazio nas medidas fiscais

Governo não clarificou aplicação no tempo das leis fiscais do Orçamento de 2010 antes da sua entrada em vigor.

É a “trapalhada” no Orçamento de Estado de 2010. Fiscalistas e constitucionalistas defendem que a aplicação da Lei do Orçamento terá de ser clarificada, pois algumas das medidas fiscais aí previstas não se aplicam antes da sua entrada em vigor, a 29 de Abril. Isto porque, o Governo afastou os efeitos a 1 de Janeiro das leis fiscais s, mas não acautelou normas transitórias para clarificar a aplicação no tempo das novas medidas. Em causa está, por exemplo, os bónus dos gestores da banca que escapam, tudo indica, à nova taxa nos primeiros quatro meses do ano.

O Ministério das Finanças confirmou ao Diário Económico que até à entrada em vigor do Orçamento, entre 1 de Janeiro e 28 de Abril, se aplicam as regras do OE/2009. Mas neste período não poderão ser aplicadas quase nenhumas das alterações fiscais previstas para 2010, ao contrário do que aconteceu anos anteriores em que o Orçamento de Estado foi publicado mais tarde, como o de 2000, mas que referia expressamente no documento a produção de efeitos ao início do ano.

“A produção de efeitos resulta da conjugação do disposto nos artigos. 4º e 41º da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO)”, avançou fonte oficial das Finanças, em resposta sobre qual o direito que se aplica às situações financeiras, incluindo as fiscais, até à entrada em vigor do Orçamento, a 29 de Abril. Em causa está, segundo as Finanças, a possibilidade de prorrogação do Orçamento do ano anterior, quer quanto às receitas a cobrar, quer via duodécimos em relação às despesas, quando o novo instrumento de gestão anual do País não tenha sido oportunamente aprovado.

O fiscalista Diogo Ortigão Ramos diz a este respeito que “do ponto de vista financeiro (que não fiscal) a vigência do OE de 2009 foi prorrogada até 28 de Abril de 2010″.

Mas também aqui surgem dúvidas a alguns especialistas, havendo mesmo especialistas de consultoras que apontam que a prorrogação do OE/2009 até à entrada em vigor do novo não será aplicável em matéria de impostos, atendendo que a LEO determina que o ano económico coincide com o ano civil e este é o período abrangido pelas regras de determinação do rendimento em IRS e pelas declarações de imposto.

Luís Fábrica, especialista em direito administrativo, frisa, porém, que a LEO “tem valor reforçado” no sentido de condicionar os termos em que são feitos os Orçamentos, pelo que a lei do OE/2010, do ponto de vista jurídico, “deve obediência” à Constituição e à LEO. Ainda, assim, Luís Fábrica não esconde que o facto de entrar em vigor a 29 de Abril “tem inconvenientes do ponto de vista administrativo e de relacionamento com os cidadãos”.

Risco de impugnações
Fiscalistas são unânimes em afirmar que vai aumentar a complexidade do processo de tratamento de impostos da máquina tributária. Em causa está a coexistência de regras distintas, nomeadamente em matéria de IRC, IRS e benefícios fiscais. A este respeito João Sousa partner da consultora Ernst & Young defende mesmo que a existência de regras diferentes, ao nível dos impostos sobre o rendimento, “não é exequível”.

Cenário que leva o ex-presidente da Comissão de Orçamento e Finanças, Jorge Neto, a ser peremptório: “quando as questões da aplicação da lei no tempo não são claras, suscita perplexidade nos agentes económicos, traduzindo-se no recurso aos tribunais para dirimir os litígios”. Antecipa, por isso, que este Orçamento, ao não produzir efeitos desde o início do ano, “é susceptível de virem a ocorrer uma série de processos de contra-ordenação, reclamações e impugnações”.

Jorge Neto considera que esta questão “deve ser objecto de esclarecimento”, num momento em que também os trabalhadores dos impostos a apelidam de “complexa”. Marcelo Castro, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), avalia a aplicação das medidas fiscais do OE/2010 apenas a partir de 29 de Abril: “Vai obrigar a um esforço acrescido dos trabalhadores dos impostos no apuramento da verdade tributária, para o qual nós estamos preparados”. O STI aguarda, no entanto, que surjam “instruções administrativas para tirar dúvidas” da aplicação no tempo das leis fiscais deste Orçamento. “Esta questão vem complexificar o sistema, que é algo que não deve ser pretendido pelo nosso legislador. Quanto mais complexo, menos compreendido e mais difícil será de cumprir”, conclui Marcelo Castro.

Emenda ou normas transitórias?
Outros fiscalistas consideram, porém, que a confusão poderia ser evitada com a previsão de normas transitórias no Orçamento. É o caso de Rogério M. Fernandes Ferreira que defende que “o legislador devia ter estabelecido, clara e circunstanciadamente, um regime transitório”. Trata-se, diz, de clarificar “o momento da entrada em vigor e da concreta aplicação de cada uma das normas fiscais que suscitam dúvidas sobre os termos do mesmo”. Objectivo: “evitar a incerteza e a insegurança decorrente da entrada em vigor no meio de um exercício orçamental, com alterações tão relevantes e desfavoráveis ao contribuinte”, frisa.

A falta de clareza na aplicação do tempo das leis fiscais levam o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia a considerar que “é um absurdo ter um Orçamento para o ano todo e só se aplicar em oito meses”. Este responsável defende mesmo que “será necessário a Assembleia da República fazer uma emenda da Lei do Orçamento, explicando que se aplica desde 1 de Janeiro”.

Já Jorge Miranda afirma que “no plano estritamente jurídico não pode haver retroactividade das leis fiscais”, à semelhança de Fernando Pacheco, ex-secretário de Estado do Orçamento, ao defender que “os impostos não podem ser cobrados sem estarem aprovados”. No entanto, este responsável não esconde que a aplicação de regras fiscais diferentes ao longo de 2010, se traduzirá “num trabalho louco para as empresas e máquina fiscal”.

Críticas partilhadas por Nuno Sampayo Ribeiro, antigo consultor técnico da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO): “O presente caso tem o mérito de confirmar como indiscutível a necessidade de repor a confiança e modernizar o processo orçamental português”. Enquanto o fiscalista Diogo Ortigão Ramos remata que “esta situação é apenas mais um sinal da trapalhada legislativa que vem marcando a vida fiscal nos últimos tempos”.

Incoerência política
Com as alterações fiscais a só produzirem a partir de 29 de Abril, o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Carlos Santos considera que esta é “uma posição que não é coerente” com a solução adoptada no PEC2, com a adopção de medidas como a sobretaxa do IRS, que acaba por ser retroactiva ao englobar os rendimentos do ano inteiro. “Num caso diz-se que se aplica para a frente, a partir da entrada em vigor do orçamento. E no caso das novas taxas de IRS, diz-se que se aplicam para trás”, conclui.

Opinião partilhada por Tiago Caiado Guerreiro: “Há uma grande desorientação, por um lado, no OE/2010 diz-se que as alterações fiscais logo só podem ser aplicadas para o futuro em todos impostos. E no novo PEC acaba por se aplicar a sobre taxa do IRS retroactivamente”.

Algumas medidas não se aplicam nos quatro primeiros meses
A tributação dos bónus do sector financeiro e das remunerações variáveis pagas por empresas são algumas das alterações fiscais que, tudo indica, não se aplicarão entre 1 de Janeiro e 28 de Abril. Em causa está a nova taxa autónoma de 50%, em sede de IRC, sobre os bónus pagos pela banca em 2010, quando estas superem 25% da remuneração variável ou sejam superiores a 27.500€. Medida figura no Orçamento de Estado deste ano, mas caso os bónus tenham sido pagos antes de 29 de Abril, não podem ser sujeitos à nova taxa.

As taxas agravadas alastram-se a todas as empresas que deveria ter este ano uma taxa autónoma de 35%, em sede de IRC, sempre que superem 25% da remuneração variável ou os 27.500€. O pagamento destas remunerações a gestores, administradores ou gerentes, naquele período, escapa, no entanto, à nova taxa de imposto.

Segundo o OE/2010, serão ainda taxadas autonomamente a 35% as indemnizações ou compensações pagas aos gestores, administradores e gerentes que cessem funções antes de decorrido o período contratual. Mas caso estas indemnizações/compensações tenham sido pagas até 28 de Abril, não deverá ser aplicada a nova taxa.

A indefinição atinge também os benefícios e deduções fiscais. Com o OE/2010, a aquisição de computadores e material informático deixa de beneficiar de incentivos fiscais. A revogação desta dedução à colecta do IRS só deverá ter efeitos, após 29 de Abril. Ou seja, deveria poder ser feita esta dedução – de 50% dos montantes despendidos até ao limite de 250 euros – até à entrada em vigor do Orçamento de Estado deste ano.
Colocam-se ainda dúvidas quanto à dedução até 30% de encargos com equipamentos e obras, realizados antes de 29 de Abril, para a melhoria das condições térmicas das casas (vidros duplos ou o isolamento de telhados). Ou equipamentos de energias renováveis. Alguns fiscalistas dizem que configuram alterações favoráveis ao contribuinte, sendo legítima a aplicação retroactiva.

Três períodos de tributação
O fiscalista Tiago Caiado Guerreiro alerta: “ficamos com três períodos de tributação: entre 1 de Janeiro e 28 de Abril (antes da entrada em vigor do Orçamento de Estado de 2010), outro de 29 de Abril a 31 de Maio (depois da entrada em vigor) e outro que contempla as novas sobre taxas de IRS, a partir de 1 de Junho”.

Rogério M. Fernandes Ferreira considera, porém, que a actualização (aumento) dos escalões de rendimentos, é uma das alterações favoráveis ao contribuinte previstas na Lei do OE/2010. Defende, por isso, que “é legítima a sua aplicação retroactiva, não existindo obstáculo legal à sua entrada em vigor logo no dia 1 de Janeiro de 2010″.

Este fiscalista conclui que, neste caso, “não se afectará, de forma inadmissível, ou intolerável, os direitos e expectativas legitimamente fundados”.
“TUDO ME SUSCITA PERPLEXIDADE A NÍVEL FISCAL”

Especialista, Henrique Nunes defende que medidas fiscais com impacto em IRC e IRS, previstas Orçamento de 2010, devem produzir efeitos a 1 de Janeiro. Alerta ainda que pessoas e empresas estão “cansadas de tanta instabilidade”.

Entre 1 de Janeiro e 28 de Abril, qual é o direito que se devia aplicar às situações fiscais da Lei do Orçamento de Estado de 2010?
Do ponto de vista fiscal, deverá aplicar-se o OE/2010 a todas as situações que tenham impacto em IRS/IRC mesmo que ocorridas anteriormente, porque o facto tributário ocorre a 31 de Dezembro. Por outro lado, nas situações sujeitas a retenções liberatórias dado o carácter imediato do facto tributário, as alterações deveriam aplicar-se apenas a rendimentos obtidos _a partir desta data.

E como fica a revogação das isenções fiscais para as mais valias mobiliárias detidas há mais de 12 meses?
A questão é, como sabe, discutível, porquanto tal representa formalmente um caso de retroactividade fraca. Pois, _a forte só surge se a alteração for produzida após a verificação plena do facto tributário (o que dada a anualidade do IRS ainda não ocorreu).

Como avalia a falta de clareza na aplicação do tempo de algumas medidas fiscais?
Neste momento, tudo me suscita perplexidade a nível fiscal… Já foi publicado o OE, mas logo veio o PEC (cujas alterações ainda não foram totalmente aprovadas) e agora novas medidas a serem anunciadas, tudo sem coerência _e que causará uma instabilidade sem precedentes… Resultado: _o investimento estrangeiro em Portugal praticamente desapareceu. Mas também muitas empresas (sobretudo PME) vivem com a “corda na garganta” devido a problemas de tesouraria e de acesso ao crédito.

in Diário Económico